Corre nos noticiários dos últimos dias o desafio lançado pelo Presidente da República ao Ministro Luís Roberto Barroso, do Supremo Tribunal Federal, diante de decisão do Ministro que determinou ao Presidente do Senado Federal que tomasse as providências necessárias à instalação de Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) naquela Casa Legislativa. Pronunciando-se nas redes sociais, o Presidente afirmou: “Barroso se omite ao não determinar ao Senado a instalação de processos de impeachment contra ministro do Supremo, mesmo a pedido de mais de 3 milhões de brasileiros”. Em vídeo também publicado, ainda declara: “se tiver um pingo de moral, Luís Barroso, mande abrir um processo de impeachment contra alguns dos seus companheiros do Supremo Tribunal Federal”. Em resposta, logo após, seguiu-se a propositura de medida judicial pelo Senador Jorge Kajuru, solicitando ao Supremo Tribunal Federal que determine ao Presidente do Senado Federal a instauração de processo de impeachment contra o Ministro Alexandre de Moraes. Foi sorteado o Ministro Kassio Nunes Marques, nomeado por Bolsonaro, para Relator do pedido.
Mas será que faz sentido o desafio retórico? Será que é possível igualar as duas situações? Se o Judiciário pode determinar ao Chefe do Legislativo a instalação de CPI, pode também ordenar o início de processo de impeachment? A resposta é negativa. Trata-se de situações jurídicas bem distintas, sujeitas a atuações marcadamente diferentes do Legislativo.
As Comissões Parlamentares de Inquérito constituem importante instrumento de ação parlamentar na fiscalização dos atos praticados pelo Poder Executivo. Sua previsão encontra-se na Constituição da República, no art. 58, § 3º, com previsão de que “serão criadas pela Câmara dos Deputados e pelo Senado Federal, em conjunto ou separadamente, mediante requerimento de um terço de seus membros, para a apuração de fato determinado e por prazo certo”. É a Constituição Federal, portanto, a norma jurídica que regula a forma de criação dessas comissões parlamentares, fixando apenas três condições, a saber: a) requerimento de um terço dos membros da Câmara de Deputados ou do Senado Federal; b) indicação de fato determinado a ser apurado; c) prazo certo para seu funcionamento. E se a Constituição determina tais condicionamentos, e apenas estes, outros não podem ser impostos por qualquer outra norma jurídica ou autoridade, sob pena de incidência em evidente situação de inconstitucionalidade. Em outras palavras: apresentado requerimento com as características listadas, o recebimento deve ser automático, e imediata a instauração da CPI.
A jurisprudência do Supremo Tribunal Federal já de há muito consagrou o direito das minorias parlamentares à instalação e funcionamento das Comissões Parlamentares de Inquérito, como ocorreu no ano de 2007, no Mandado de Segurança nº 26441, do qual foi Relator o Ministro Celso de Mello, de cuja ementa de julgamento se extrai: “A maioria legislativa não pode frustrar o exercício, pelos grupos minoritários que atuam no Congresso Nacional, do direito público subjetivo que lhes é assegurado pelo art. 58, § 3º, da Constituição e que lhes confere a prerrogativa de ver efetivamente instaurada a investigação parlamentar, por período certo, sobre fato determinado”. Assim, ao conceder ordem determinando a instalação de CPI o Min. Luís Roberto Barroso não inovou, apenas seguiu entendimento já anteriormente pacificado na Corte Suprema.
Já o recebimento de processo de impeachment, embora conte com indicação de cabimento na mesma Constituição Federal (art. 52, I e II), tem na legislação ordinária a regulamentação de sua instauração, mais especificamente na antiga Lei nº 1.079/1950. Mas neste caso não há recebimento automático, longe disso. Confere-se ao Presidente da Casa Legislativa a faculdade de examinar o cabimento do pedido, podendo arquiva-lo sumariamente, se o entender descabido. Com a palavra, novamente, a jurisprudência do STF, aqui nos dizeres do Min. Ricardo Lewandowski: “a competência do Presidente da Câmara dos Deputados e da Mesa do Senado Federal para recebimento, ou não, de denúncia no processo de impeachment não se restringe a uma admissão meramente burocrática, cabendo-lhes, inclusive, a faculdade de rejeitá-la, de plano, acaso entendam ser patentemente inepta ou despida de justa causa” (AgR no MS 30672, julg. em 15/09/2011). Constata-se, pelo visto, que neste caso não há espaço para instauração automática do pedido de impeachment, considerando-se que a denúncia terá seu cabimento examinado pelo Presidente da Casa Legislativa, podendo por ele ser arquivada antes de ser submetida à apreciação de todos os parlamentares.
As situações são bem diferentes, portanto, e não admitem comparação. O desafio retórico não se sustenta.
Ainda bem. Se assim não fosse, haveria o Presidente da República de ser confrontado com mais de uma centena de pedidos de impeachment contra ele formulados, que aguardam decisão de prosseguimento ou não por parte do Presidente da Câmara dos Deputados. Aliás, há notícia de que, na onda da atual controvérsia, o Deputado Federal Kim Kataguiri ingressou com medida judicial requerendo ao Supremo Tribunal Federal que fixe prazo para que o Presidente da Câmara analise os 112 pedidos de impeachment apresentados em desfavor do Presidente Bolsonaro. Espera-se que no exame dos dois pedidos, do Senador Jorge Kajuru e do Deputado Kim Kataguiri, seja confirmada a jurisprudência do STF. Aguardam-se os próximos capítulos.
João Fernando Lopes de Carvalho – Advogado especialista em Direito Eleitoral e Administrativo. Mestre em Direito do Estado pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo e sócio do escritório Alberto Rollo Advogados Associados.
João Fernando Lopes de Carvalho